terça-feira, 17 de abril de 2012

O final do primeiro capítulo



Enfim, depois de MUITOS meses, consegui um tempinho para finalizar e corrigir o primeiro capítulo. Fiz algumas alterações e correções no texto, mas acredito que nada destoe ou saia muito do que aqui foi publicado. 
A partir de agora, darei continuidade ao blog apenas com os textos paralelos, curiosidades e ilustrações. Espero que todos gostem e todos os comentários, críticas e sugestões serão bem vindos!



Assim que chegou ao templo, Tsuin-Hou prostrou-se diante da imagem de Tuttan, o grande disco dourado fixado na parede oeste. Estava arrependido por ter mentido para o povo e, mesmo querendo acreditar que tudo acabaria bem, tinha medo de que algo saísse errado. Decidira resolver os problemas do isolamento utilizando-se dos meios necessários, fossem quais fossem, porém não previra que as decisões que estivesse tomando pudessem fazer-lhe tanto mal. "A mentira é algo venenoso", pensou. "Ó grande Tuttan, perdoa-me!"
A porta do templo se abriu ruidosamente, tirando o velho sacerdote de suas meditações. Voltou-se para trás e viu que Shigg havia entrado, e o olhava com uma expressão carrancuda. "E mais essa agora", disse para si mesmo. "Não serei capaz de mentir para a pobrezinha."
- Seja bem-vinda, filha - disse ele. - Acho que sei o que veio fazer aqui, por isso antecipo-me e peço-te perdão.
- Como ousa mentir para o povo? - Ela perguntou, exaltada. - Por que agiu assim? Como pôde sugerir que Don-Kee possa não ser o verdadeiro Escolhido?
O velho sacerdote não conseguiu suportar o olhar furioso da fêmea. Olhando para o chão, respondeu:
- Sou apenas um velho fraco e amedrontado, filha. Perdoe-me, por favor. Por covardia, não neguei a sugestão de Vermuhakhan, pois tinha medo de que nossa tribo pudesse sucumbir, se ficássemos um mês sem líder. Foi por isso que autorizei a partida de Don-Kee antes da hora, mesmo sabendo que estaríamos indo contra as leis sagradas.
A tristeza e o arrependimento do velho pareceram não comover a jovem:
- Mas e agora? O que vai ser do meu macho? Como poderá ele voltar, depois de tudo o que você disse hoje?
- Escute-me, Shigg - respondeu Tsuin-Hou - Don-Kee e Vermuhakhan não tem culpa nenhuma do ocorrido, ela é toda minha. Desde que Don-Kee partiu, venho buscando uma solução para meu erro e, na noite passada, encontrei-a. Usaremos o combate de Enmbarh.
- E o que vem a ser isso? - perguntou a fêmea.
- É uma lei há muito esquecida, que vem dos tempos anteriores ao Código de Tuttan, escrito pelos Chimpanzés e adotado por todas as tribos de Tuttenbarh. É uma lei gorila, que vem do tempo em que os macacos ainda não falavam. Venha, vou mostrar-lhe.
Tsuin-Hou levantou-se, seguido por Shigg. Atravessaram a nave do templo e passaram por uma porta lateral. Atravessando-na, entraram em um pequeno quarto, onde havia uma abertura que dava em uma íngreme escada que levava ao subterrâneo. Em uma das paredes, havia um par de pedras de pederneira e, com elas, acendeu uma tocha que estava pendurada na parede. Pegando-a, desceu as escadas e, seguido de perto pela jovem, ambos chegaram a um corredor cujas paredes eram de pedra e parcamente iluminadas por tochas em vãos escavados, repletas de portas à esquerda e à direita. Abriu uma delas e, adiantando-se, acendeu as luminárias dentro do recinto, revelando uma enorme biblioteca. Shigg ficou impressionada com o tamanho e a quantidade de tábuas e placas de pedra gravadas, pergaminhos enrolados ou empilhados, tecidos com inscrições que não compreendia e grossos volumes encadernados que se avolumavam nas numerosas estantes de madeira velha e pesada.
Tsuin-Hou parou diante de uma velha mesa, acendeu uma vela que estava num tosco castiçal de marfim e, apontando para uma pesada placa de pedra, pediu para que Shigg a lêsse.
- Não compreendo esta escrita - disse ela, ao observar os rústicos sinais gravados. O que dizem estas marcas?
- Esta é a pedra onde está gravada a lei do Combate de Enmbarh - respondeu o sacerdote. - Realmente, está escrita na primeira grafia dos gorilas, mas posso lê-la para você.
- Por favor - respondeu a fêmea.
Aproximando-se da mesa, o velho pigarreou e leu:

Que aqui fique escrito, para que todos os gorilas possam saber:
Aquele que possui o direito sobre alguma coisa tem o dever de cuidar de sua posse, de fazer bom uso dela e de protegê-la. Isso não pode ser negado, pois uma vez que algo pertence a alguém, nem mesmo Tuttan e Enmbarh podem tirar-lhe isto. Todavia, se dois ou mais gorilas dizem-se possuidores do direito sobre algo, deve-se aplicar esta lei, a lei do Combate de Enmbarh, senhora do mundo dos mortos e juíza das almas.
Na primeira noite da plenitude celeste de Enmbarh, após declarado o Combate, aqueles que reclamam os direitos de posse devem sair pela porta leste da tribo e devem se dirigir à mais próxima clareira, sempre à leste. Lá travarão um combate corpo a corpo, sem testemunhas e até a morte. Aquele que for o verdadeiro possuidor do direito vencerá, pois essa é a vontade dos deuses. Ao final do combate, é obrigação do vencedor enterrar seu adversário e trazer uma prova de sua vitória.
Que aqui fique escrito, para que todos os gorilas possam saber.

- O quê? O senhor está dizendo que Don-Kee e Mokua travarão uma luta até a morte, pelo direito de liderar a tribo? Não, isso não!
A reação de Shigg surpreendeu o supremo sacerdote. Ele esperava que isso a tranquilizasse, já que, além de ser o verdadeiro Escolhido, Don-Kee jamais perdera uma luta em toda a sua vida. Desconcertado, perguntou:
- Minha jovem, o que a aflige? Não compreendeu o que diz a lei antiga?
- Compreendi muito bem, Tsuin-Hou - respondeu ela. - E é por isso que temo! Não pode ser que você não enxergue a falha nesta lei, que uma jovem e ignorante fêmea enxergou!
- Shigg, esta é uma lei antiga, porém ainda válida. Você não deve duvidar de sua eficácia.
- Se ainda é válida, por que não é mais aplicada nos dias atuais? - Perguntou a fêmea, decidida.
- Ora, - respondeu o velho - ela simplesmente caiu no esquecimento! Veja bem, depois do conselho supremo da floresta, ocorrido na tribo dos chimpanzés, em ...
- Me desculpe, Tsuin-Hou - interrompeu a jovem. - Não posso acreditar que você esteja defendendo tamanha loucura.
- Loucura? E por que diz isso?
- Essa lei, o Combate de Enmbarh - respondeu ela. - Como pode ser cumprida à risca? Como pode-se garantir que os dois gorilas que lutarem serão honestos? É um combate sem testemunhas!
- Não se pode duvidar dos combatentes, Shigg - respondeu Tsuin-Hou. - Eles estão sobre a vista de Enmbarh, num combate sagrado, que será imposto por mim e que...
- Mas é de Mokua que estamos falando! - Interrompeu ela. - Tsuin-Hou, meu querido Tsuin-Hou! Ele nunca mede esforços para conseguir o que quer!
- Tuttan não permitirá qualquer trapaça neste combate, minha jovem. Tuttan jamais permite trapaças.
- Ah sim? E quanto a partida de Don-Kee? Isso não foi uma trapaça?
- NÃO! - exaltou-se o supremo sacerdote. - O que foi feito visou unicamente o bem e isso não é uma trapaça! Filha, escute o que lhe digo e tenha fé naquilo que é certo: Don-Kee vencerá o combate porque ele é invencível e tem as graças de Tuttan para ser líder! Antes de que ele partisse para o isolamento, Vermuhakhan, iluminado pela sabedoria daqueles que estão à beira da morte, previu que o destino de Don-Kee será grandioso! Não tema, pequena fêmea, pois não há nada a temer!
Tsuin-Hou disse tudo aquilo para convence-la, porém antes disso, disse para convencer-se a si mesmo. Ele não podia deixar que aquela jovem lhe mostrasse tamanho erro, mesmo que já soubesse de tudo aquilo. Acima de tudo ele não queria errar de novo, mesmo sabendo que estava persistindo no mesmo erro. Após um breve momento de silêncio, voltou a falar, com a voz mais calma:
- Querida filha, não tema. Por favor, tenha fé.
A jovem abaixou os olhos e sua luta para controlar a raiva e o medo era visível. Trêmula, respondeu:
- Rezo ao deus da luz, Tsuin-Hou, para que você não esteja enganado. Eu ouço e obedeço. Pode contar com meu apoio e meu silêncio.
- Muito obrigado. - Respondeu o sacerdote. - É importante para mim ter o seu apoio. Venha, vamos subir.
Enquanto Tsuin-Hou apagava a vela e as luminárias, Shigg saiu para o corredor. Pensou ter ouvido um ruído, mas não se preocupou com aquilo. As paredes rochosas eram velhas e algum pequeno pedregulho poderia ter rolado de algum vão. Despreocupada, esperou o velho fechar a porta e, seguindo-o, subiu as escadas, atravessou o templo e saiu dele.

Ofegante e com um brilho estranho no olhar, Mokua escondia-se atrás da porta de entrada do templo, sorrindo maliciosamente.

sábado, 17 de setembro de 2011

Tuttan

É assim que o deus criador é representado em todos os templos erguidos em sua honra, nas tribos de macacos de Tutenbarh. A imagem dourada é sempre fixada na parede oeste do templo, para que receba a luz matinal de Tuttan. A parede leste é repleta de aberturas estreitas que ficam bem no alto, quase no teto. Os ritos sagrados se dão sempre das 10h às 11h, quando a luz bate exatamente nas janelinhas, sendo refletidas diretamente no disco dourado, que a distribui para o resto do salão.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

sábado, 27 de agosto de 2011

Seguindo com o primeiro capítulo


E o que ele mais queria era o poder. Poder sobre tudo e todos, poder para usar as suas ideias, poder de mostrar o quanto era capaz de conduzir o povo a ideais maiores do que jamais alguém ousaria imaginar. Desde filhote, todas as suas ações foram dedicadas a conseguir apenas isso: o poder total sobre os gorilas. Devido a sua mirrada constituição física, nunca se destacou no exercício físico, no desenvolvimento do corpo e nem nas artes de combate. Por causa disso, obteve o grau máximo no treinamento de Tuttan apenas no que dizia respeito ao condicionamento da mente e do interior e isso o satisfez. Quando atingiu a maioridade, iniciou-se na ordem de Tuttan - não por buscar ampliar seu conhecimento nas tradições, mas sim porque era o meio mais fácil de adquirir uma posição respeitosa - tornando-se seu sacerdote. Ainda assim, alguns gorilas acreditavam que, na realidade, ele servisse secretamente a Enmbarh.

O que mais intrigava Mokua era o sumiço de Don-Kee. Há mais de quinze dias que ninguém tinha notícias dele. Qual seria a missão para a qual fora enviado e por que ela era tão secreta? E por que essa missão não podia ser feita por outro, estando Vermuhakhan tão próximo da morte e Don-Kee sendo o Escolhido para substituí-lo? Será que Don-Kee voltaria à tempo de partir para o isolamento? Nestes últimos dias, o Líder definhara muito e se aproximara ainda mais da morte. Os sacerdotes revezavam-se, fazendo vigília em sua casa e a praça central estava sempre cheia de gorilas a espera de notícias. Tsuin-Hou praticamente não abandonava o pé da cama onde agonizava seu amigo e Mokua também estava quase sempre por lá, mesmo que sua mente andasse muito longe dali, tentando bolar um plano de tirar partido dessa situação. Na verdade, não conseguia mais pensar em outra coisa que não fosse uma forma de se aproveitar da morte de Vermuhakhan e suplantar Don-Kee.

Suas maquinações foram interrompidas por um mensageiro, que bateu à porta:
- Lorde Mokua, o supremo está requisitando a presença de todos os sacerdotes à casa do Líder.
"Heh", pensou, "enfim a hora se aproxima". - Pois bem, estou à caminho. - respondeu.

As araras empoleiravam-se nos galhos das árvores ao redor da praça central, como se pressentissem que algo importante estava para acontecer. Alguns gorilas jovens ocupavam-se de espantá-las dali, com grandes varas de bambu, porém elas sempre voltavam a pousar em lugares diferentes. O povo estava aflito e a presença das aves piorava a situação, pois as tagarelas eram as responsáveis por espalhar as notícias rapidamente pela floresta. Desta forma, Thembô e o resto dos bugios logo ficariam sabendo que, em breve, a tribo estaria sem Líder.
Já fazia muito tempo que os sacerdotes estavam dentro da casa. Os gorilas murmuravam entre si, inquietos, tristes e amedrontados. Quando Tuttan estava quase a se recolher no horizonte, Tsuin-Hou saiu da casa, seguido pelos outros sacerdotes. Adiantou-se e ergueu as mãos, pedindo silêncio. O povo calou-se:
- Amigos, irmãos! - disse. - É com grande pesar que venho comunicar-lhes que nosso grande Líder, Vermuhakhan, partiu para o reino de Enmbarh. - Murmúrios e lamentos foram ouvidos entre os presentes. Tsuin-Hou continuou. - Sua passagem foi tranquila e não houve sofrimento. Ele foi um bom gorila e um bom Líder. Oremos um momento por sua alma. Baixando os olhos, calou-se e a multidão o imitou. Instantes depois, continuou:
- Infelizmente, esta não é a única má notícia que venho vos trazer. É meu dever, como guia da tribo, compartilhar convosco a angústia com a qual o falecido Líder e eu estávamos precisando lidar já a algum tempo: Don-Kee, o Escolhido, foi enviado em uma missão secreta há quinze dias e não temos notícias dele desde então. Está desaparecido.
Exclamações de surpresa e temor espalharam-se por toda a praça e as vozes dos gorilas foram se elevando cada vez mais. Num brado imponente, Tsuin-Hou restaurou a ordem:
- Por favor, não nos desesperemos! A situação é grave e o momento é de urgência! A guerra contra os bugios está acontecendo não muito longe daqui e devemos ficar unidos! O Líder e eu refletimos muito sobre o que poderia estar acontecendo e chegamos a algumas conclusões do que pode ter acontecido a ele. A primeira delas é aquela que acreditamos ser verdade: Tuttan pode tê-lo iluminado e, movido pela pressa, Don-Kee pode ter pressentido a morte de Vermuhakhan e ter se antecipado, partindo para o isolamento.
Os murmúrios na praça ergueram-se novamente. Tsuin-Hou continuou:
- Porém, não temos certeza disso e este é o motivo pelo qual tenho a obrigação de pedir o seguinte a vós todos: se houver alguém entre vocês que esteja sentindo o chamado de Tuttan, manifeste-se agora.
A indignação tomou conta de todos. Como o supremo sacerdote ousava fazer isso? Todos sabiam que havia apenas um escolhido e este era Don-Kee! Nunca, na história da tribo, houve mais de um escolhido, nem mesmo antes de os macacos falarem. Apenas um era iluminado e apenas um estava apto a ser o novo Líder, após a morte do antigo.
Tsuin-Hou sabia que o povo não aceitaria bem o pedido e também que este seria o momento mais delicado que enfrentaria, mas não podia contar a verdade. Nem Vermuhakhan e nem ele haviam tido coragem de comentar entre si, mas ambos sabiam que agiram mal ao anteciparem o isolamento de Don-Kee. Era uma lei sagrada e eles haviam-na desobedecido. Seus pensamentos voltaram ao dia em que o jovem partira, quando logo após acompanhá-lo ao portão oeste e de ter entregue sua carta à Shigg, enfiara-se na biblioteca do templo, procurando uma forma de sanar o mal que cometera motivado pelo medo de que a tribo ficasse sem Líder por muito tempo. Não sabia o que procurava, mas acreditava que encontraria alguma lei que fosse mais forte do que aquela que haviam ignorado, para que pudesse aplicá-la sobre a outra,anulando assim a desobediência à primeira. Procurou por muitos dias e orou a Tuttan para que o perdoasse e o ajudasse. Acabou encontrando algo no dia anterior àquele e seu espírito se desanuviou, mesmo sabendo que haveria de enfrentar uma resposta possivelmente negativa, por parte do povo. Mesmo assim, tinha fé de que conseguiria matar dois coelhos com uma só cajadada.
- Escutai, ó gorilas! - gritou, prevendo a reação que sus próximas palavras teriam nos gorilas. - Pedi-vos o que pedi pois devemos levar em conta um outro fato, por mais assustador e improvável que possa ser! Se por acaso realmente existir entre nós um gorila que sinta-se iluminado por Tuttan, Don-Kee talvez possa ter sido um falso Escolhido!
Os gritos indignados do povo aumentaram ainda mais. Ninguém acreditava no que estava ouvindo. A multidão poderia estourar a qualquer minuto e Tsuin-Hou acenou com a cabeça ao capitão dos guardas que se encontrava por ali, para que se mantivesse em alerta. Quando o povo parecia estar prestes a perder o controle, Mokua se adiantou e ergueu as mãos, gritando:
- Acalmai-vos, ó povo de Tuttan! Peço a palavra por uns momentos e creio que tudo ficará claro quando eu terminar!
O povo lentamente foi se acalmando. A curiosidade de saber o que Mokua diria foi superando a raiva e a indignação pelo que Tsuin-Hou havia dito. Mokua continuou:
- Entendo o sentimento que cresceu em todos vocês ao ouvirem as palavras do supermo sacerdote. A ira gerada pela não-aceitação do pedido de Tsuin-Hou cresceu visivelmente em todos, conforme ele falava. Isso é compreensível, pois entre vocês não há um Escolhido.
Um brado ergueu-se na praça, demonstrando que os gorilas concordavam.
- Porém - continuou o segundo sacerdote - não há razão para temer ou se revoltar! Pode haver um escolhido em algum outro lugar que não entre vocês! Se assim o for, a ira é injustificada!
Com um brilho no olhar, Mokua aproveitou o momento, deixando que a multidão ruminasse a ideia. Sentia-se a ponto de explodir, porém precisava manter a calma aparente, ou tudo iria por água abaixo. Esperou que a atenção de todos estivesse voltada para ele e que o silêncio se fizesse espontâneamente, saboreando o efeito que suas palavras haviam causado. Quando sentiu os olhares todos sobre si, continuou:
- As mesmas palavras que vocês acabaram de ouvir da boca do supremo sacerdote operaram em mim um efeito diferente do causado a vocês. Enquanto vocês se inquietavam cada vez mais, uma paz interior instalava-se em minha alma. Senti que as dúvidas com as quais eu lutava já há algum tempo iam perdendo força e enfim tomei consciência de meu destino. - e virando-se para Tsuin-Hou, disse: - Eu sou o Escolhido.
Mokua, o Escolhido? O espanto era tanto que nem mesmo a menor das exaltações foi percebida entre os gorilas na praça. Era como se todos houvessem parado de respirar por alguns momentos. O único que não parecia surpreso era Tsuin-Hou. Adiantando-se novamente, pôs-se cara a cara com Mokua e, olhando-o profundamente nos olhos, viu a mentira incrustada em sua alma. Sorriu interiormente e perguntou numa voz clara e pausada, para que todos ouvissem:
- Amigo! Irmão! Você tem certeza disso?
- Sim - ele respondeu. - Já há alguns dias eu vinha sentindo o chamado de Tuttan, porém quis acreditar que o que percebia dentro de mim não era verdade, pois Don-Kee era o Escolhido. Agora eu tenho certeza de que, por mais triste que seja, ou ele não o era verdadeiramente, ou algo terrível deve ter-lhe acontecido.
Mais alguns murmúrios de espanto e indignação. Mokua não queria deixar que o povo se exaltasse novamente, portanto continuou:
- Sei que é uma verdade dura e difícil, porém é fato que devemos aceitar as coisas como elas são. O desaparecimento do Escolhido no momento em que deveria isolar-se é atípico, portanto é natural que surja outro para ocupar-lhe o lugar, por mais atípico que isso também possa ser. Não se aflijam, filhos da raça dos fortes e insuperáveis! Tuttan não deixará de sustentar e proteger nossa tribo! Confiai na sabedoria do criador!
Vendo que não houve reação do povo após o breve discurso de Mokua, Tsuin-Hou disse:
- Estas foram palavras de um verdadeiro Líder, seja-o ele ou não! Elas demonstram que ele não age de má fé. Por isso, diante de todos e com o poder a mim instituído, autorizo sua partida imediata para o isolamento, afim de que Tuttan lhe ilumine!
Mokua fez uma reverência e o povo retribuiu, alguns visivelmente contrariados. Mesmo assim, depois de tudo o que haviam presenciado, acabaram aceitando a situação, resignados. As palavras de Mokua haviam tocado fundo o orgulho dos gorilas. Nenhum deles poderia admitir, nem mesmo para si próprios, que estivessem com medo do que pudesse acontecer daquele momento em diante.
Os sacerdotes ficaram esperando que Tsuin-Hou proferisse a bênção da partida, mas ele não o fez. Ao contrário, despediu a multidão, anunciando que os ritos funerários de Vermuhakhan teriam início a meia-noite e retirou-se em seguida. Os sacerdotes então conversaram entre si e concluíram que, por tudo estar acontecendo de forma incomum, talvez Tsuin-Hou tivesse esquecido de abençoar Mokua e pediram para que ele fosse procurar o supremo sacerdote, para recebê-la. Mokua assentiu e também se retirou. Estava radiante e não receber a bênção de partida não o incomodava. De qualquer forma, rumou para o templo, pois não queria que ninguém pudesse acusá-lo de ter iniciado o isolamento sem que se cumprissem todos os ritos.
Tudo acontecera melhor do que esperara.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ilustrações (II)

Sketches à lápis de alguns personagens que aparecem neste primeiro capítulo: Vermuhakhan, Tsuin-Hou, Shigg e Mokua.




quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Mais ainda do primeiro capítulo

Após banho e refeição bem merecidos, Don-Kee sentou-se ao lado de sua fêmea na relva, do lado de fora da casa. Contou-lhe toda a conversa com Tsuin-Hou e Vermuhakhan e ela escutou atentamente, sem interromper. Quando terminou o relato, ele se deitou de costas na grama, a contemplar as estrelas e percebeu que Enmbarh não estava cheia no céu. Repreendeu-se pelo descuido de olhar para cima sem antes averiguar a fase da lua, pois olhar diretamente para a deusa da morte, estando ela nessas condições, era considerado profano. Passou a apreciar a brisa e a pálida luz das estrelas, tentando não pensar em nada, quando Shigg falou:

- Don-Kee, se nosso Líder e o supremo sacerdote tem certeza do que disseram, você não tem com o que se preocupar. Fico feliz que tenha respondido a eles o que respondeu e não vejo outra forma de proceder. É claro, não entendo nada dos grandes assuntos de estado, muito menos das tradições, mas não me parece que haja algo errado.

- Então por que essa sensação ruim não me sai do coração? - ele perguntou. - Da mesma forma que Vermuhakhan estava certo de agir corretamente, eu também tenho certeza de estar agindo de forma errada.

- Meu querido macho, você está apenas muito cansado - disse ternamente a fêmea. - Tantos dias no meio de tão perigosas batalhas, tendo que se preocupar com seus homens e com o futuro da tribo podem cansar até mesmo você, o mais forte dos gorilas! Não se preocupe tanto por agora. Acho que, depois de uma noite de sono, as ideias estarão mais claras em sua mente e seu julgamento será mais acertado!

- Nisso você tem razão - respondeu Don-Kee. - Tenho muita sorte de ter você como minha companheira! Venha, vamos dormir. Amanhã será um dia importante não só para mim, mas para todos os de nossa raça, estejam meu pai e Tsuin-Hou certos ou errados em sua decisão.

E, erguendo-se de um salto, puxou a fêmea para seu colo e entrou na casa.

Pouco antes do alvorecer, Don-Kee despertou. Tomando cuidado para que Shigg não acordasse, deslizou para fora da cama, vestiu-se apressadamente e dirigiu-se à casa do Líder. Novamente foi saudado pelas anciãs, que mantinham-se firmes em seu posto, porém em menor número devido a divisão de turnos que haviam estabelecido. O guarda na porta da casa era outro, mas saudou seu general e abriu-lhe passagem, sem dizer nada. O interior da casa estava levemente iluminado pelas primeiras e frias luzes de Tuttan e as plantas no jardim estavam cobertas de orvalho. Don-Kee viu que uma lamparina estava acesa no interior dos aposentos de Vermuhakhan, portanto bateu na porta e esperou.

- Entre! - Disse uma voz vinda de dentro do quarto.

Tsuin-Hou e o Líder estavam sentados em confortáveis poltronas acolchoadas ao lado da cama. Sentado, Vermuhakhan ficava bastante encurvado, o que o fazia parecer ainda mais velho.

- Sente-se, meu filho. - Ele disse, apontando para um banco. Don-Kee obedeceu.

- Aqui estou, pai, para receber sua bênção. - Ele respondeu.

- Antes disso, Don-Kee - disse Tsuin-Hou - precisamos acertar algumas coisas que faltaram ser ditas ontem.

Vermuhakhan mexeu-se no assento e resmungou. Tsuin-Hou olhou para ele rapidamente, como se o censurasse e continuou:

- Você precisará manter segredo sobre esse assunto, meu filho. Além de sua fêmea, há mais alguém para quem você tenha contado o que decidimos?

- Não, senhor. - respondeu o jovem. - Mas por que é necessário o sigilo?

- Bem, Don-Kee. Nós sabemos que a decisão de adiantar a sua partida é o mais acertado a ser feito. Mas e quando ao resto da tribo? Alguns maus elementos podem incitar o povo a ignorar a lógica que usamos e tirar proveito disso, condenando-nos por irmos contra a lei que diz que o Escolhido deve partir apenas após a morte do antigo Líder.

- Mas quem seria capaz de duvidar do julgamento de vocês? Quem poderia ser tão desprezível a esse ponto?

- Você realmente não sabe quem seria tão baixo a ponto de agir assim? - perguntou Vermuhakhan.

- Bem - respondeu o jovem - apenas um nome me vem à mente. Mokua.

- Sua intuição o serve bem novamente, meu filho. - disse Tsuin-Hou. - Não se esqueça que Mokua o inveja desde quando eram filhotes. Além disso, ele vem de uma família de muitas posses... E é o segundo sacerdote da tribo. Sua influência é bastante grande, embora não seja muito querido pelo povo.

- Mas então o que faremos? - perguntou Don-Kee. - Será que isso tudo não é prova de que estamos agindo errado, ao passar por cima da lei do isol...

- Don-Kee, de uma vez por todas, não estamos passando por cima de nada! - exaltou-se Vermuhakhan. - Quando você regressar do seu período de ausência da tribo, sentirá dentro de você a graça que Tuttan concede ao líder, para que governe! Espero que se arrependa, então, de ter duvidado de seu Líder e pai!

- Me perdoe, pai. Me perdoe, meu Líder - respondeu Don-Kee, sentindo-se o pior macaco do mundo. - Essa não foi a minha intenção, jamais quis duvidar de você. Eu apenas...

- Bem, se é assim, não devemos perder mais tempo. - Interrompeu Tsuin-Hou. - Você precisa partir ainda hoje, antes do meio-dia, para que possa regressar com Tuttan no centro do céu, completando o isolamento como mandam as antigas leis.

- Venha para perto de mim, meu filho - pediu Vermuhakhan.

Don-Kee ajoelhou-se ao lado do pai, segurando sua mão direita entre as suas. Olhou para ele nos olhos, tentando deixar transparecer todo o amor que sentia pelo velho gorila.

- Pai, eu...

- Você foi um bom filho para mim, Don-Kee. Parto deste mundo feliz e com a consciência tranquila, por ter criado um gorila tão bom, generoso e cumpridor do dever, que pensa no bem estar dos outros antes de pensar em si. Você será um Líder melhor do que eu fui. Vá em paz e que Tuttan te abençoe com todas as dádivas que um macaco possa merecer.

O velho abraçou seu filho que, emocionado, rompeu em lágrimas silenciosas. Don-Kee não queria que aquele momento acabasse. Sabia que era a última vez em que veria seu pai e já lhe doía no peito a saudade antecipada. Com esforço, lutou contra o desejo de que aquele abraço não terminasse nunca e levantou-se, enxugando as lágrimas:

- Adeus, meu pai. Não tenho palavras para agradecer tudo o que fez por mim. Sem você, eu não seria nada do que sou. Tenho orgulho de ser seu filho!

Vermuhakhan sorriu e fechou os olhos. Tsuin-Hou aproveitou o momento e disse:

- Bem... Normalmente, sua bênção de partida seria dada diante de toda a tribo, na praça central, mas devido às circunstâncias as quais nos encontramos, vire-se para mim, ajoelhe-se sobre o joelho direito e abaixe a cabeça, Don-Kee. - O velho tirou um pergaminho da manga, desenrolou-o e leu: - Ó Tuttan, criador de tudo o que vive, aquele que fez Baan-Thô do barro, logo após ter feito o primeiro homem da mesma matéria, conceda a sua bênção plena à Don-Kee, que parte neste momento afim de receber todas as graças necessárias para liderar a tribo dos gorilas. Conceda-lhe luz para perceber as dádivas que tu lhe proporcionar, força para agir sempre em teu nome, humildade para reconhecer-se soberano abaixo de ti, generosidade ao transmitir teus dons aos outros, intrepidez para combater tudo o que ameaçar o teu poder e longevidade, para que te sirva por muitos anos. Que assim seja feito, sob teu céu."

O sacerdote fez um gesto, indicando que Don-Kee deveria se levantar. Guardou o pergaminho e olhou-o nos olhos:

- A partir de agora você está proibido de proferir qualquer palavra até o momento de seu regresso, daqui a trinta dias, quando Tuttan estiver a pino. Você deve partir sem falar com mais ninguém, nem mesmo sua fêmea, mas eu posso entregar-lhe uma mensagem escrita por você, se assim o desejar.

Don-Kee fez que sim. Tsuin-Hou lhe entregou uma pena e um pedaço de pergaminho, onde o jovem escreveu algumas palavras à sua fêmea. O sacerdote então guardou o pergaminho na outra manga e disse para que ele ficasse tranquilo, pois falaria com Shigg sobre a necessidade de não comentar sobre essa história. Após uma breve despedida, o futuro Líder saiu com Tsuin-Hou do quarto e ambos seguiram em direção ao portão oeste, por onde Don-Kee deveria sair, para depois rumar ao sul, até a clareira sagrada, quase no limite de Tuttenbarh . Transcorrido o período do isolamento, ele voltaria a entrar na cidade pelo portão leste, que quase nunca era aberto, já que poucos vinham desta direção.

***

- Suma da minha frente, seu imprestável, antes que eu acabe com a sua raça!

O grito atravessou a porta em direção ao corredor do andar superior do palacete que dominava o campo de visão naquela parte da região norte da cidade. Um gorila assustado saiu correndo da sala e desapareceu escada abaixo. Alguns criados que passavam por ali se entreolharam, com uma expressão triste e resignada. Era o quinto naquele dia.

Mokua estava furioso. Nenhum de seus espiões conseguira, até agora, dar-lhe nenhuma informação concreta a respeito do motivo da convocação de Don-Kee por parte de Vermuhakhan. Ele não concebia a ideia de ficar sem saber o que acontecia em toda parte e já não sabia mais o que fazer para conseguir as informações que desejava. Do que adiantava ser um dos gorilas mais ricos e poderosos da tribo, se não tinha tudo o que queria?

E o que ele mais queria era o poder total. Desde filhote, todas as suas ações foram dedicadas a conseguir apenas isso: o poder total sobre os gorilas. Devido a sua mirrada constituição física, nunca se destacou no exercício de desenvolvimento do corpo e nem nas artes de combate. Por causa disso, obteve o grau máximo no treinamento de Tuttan apenas no que dizia respeito ao condicionamento da mente e do interior e isso o satisfez inteiramente. Quando atingiu a maioridade, iniciou-se na ordem de Tuttan - não por buscar ampliar seu conhecimento nas tradições, mas sim porque era o meio mais fácil de adquirir uma posição respeitosa.

Ilustrações (I)

Como comentei no post anterior, desenho as personagens desta história desde que a ideia começou a brotar na minha cabeça. O traço foi sempre evoluíndo, conforme fui crescendo e aprimorando meu estilo, e tenciono colocar aqui algumas "relíquias" de mais de 12 anos atrás. Antes de mais nada, porém, eu gostaria de deixar claro que, mesmo que a ideia inicialmente tenha sido elaborar uma história em quadrinhos, hoje este não é mais o foco e as ilustrações são apenas um capricho de minha parte - não fazem parte do projeto de maneira alguma, servem apenas para a minha diversão. Eu as desenho porque gosto e, sinceramente, acredito que meu estilo de traço, que mistura mangá com cartoon, não alcança o que eu gostaria de transmitir, na elaboração da saga de Don-Kee.
E, por falar nele, aí vai um sketch que fiz dele hoje, à lápis, como apareceria no começo da história.



terça-feira, 16 de agosto de 2011

A história dessa história

Eu sempre gostei de inventar histórias.
Inventar aventuras e personagens era delicioso, mas compartilhar tudo isso com outras pessoas era ainda mais. Quando eu era pequeno, a molecada do prédio se reunia muitas vezes lá embaixo, após ter brincado a tarde toda, sentava em roda e eu ia inventando e contando "causos", histórias de aventuras ou de terror... E me esbaldava com isso.
Muitas das nossas brincadeiras de férias de verão eram baseadas nessas histórias. Brincadeiras de férias porque, durante esse tempo, tínhamos o dia todo para brincar, sem ter que ir pra escola ou fazer lição de casa. E foi numa dessas férias, há mais de quinze anos, que começaram a aparecer os primeiros temas de Sob o Céu de Tuttan.
Tudo começou quando propus que brincássemos de imitar macacos. Tenho uma série de livros em casa que conta hábitos de animais e os textos são ilustrados com figuras incríveis. E para um garoto curioso na faixa de seus doze anos, aquilo era uma fonte inesgotável de ideias. Dele surgiu meu gosto pelos símios e por seus hábitos e eu ficava fascinado com o quanto seus hábitos se assemelham, muitas vezes, aos do seres humanos. Foi daí que sugeri às outras crianças que brincássemos, cada um sendo um macaco de uma raça diferente: gorila, chimpanzé, babuíno, orangotango, sagui, bugio e macaco-aranha, cada um agindo conforme as características de cada raça. A brincadeira rendeu por muitos dias, porém não teria a continuidade que teve, por meses (talvez anos), se não tivesse surgido uma historinha por trás, uma espécie de roteiro que ia se modificando e crescendo conforme íamos brincando.
Como sempre gostei de desenhar, desenhei todos os personagens. E eles foram ganhando, no papel, características mais humanas como roupas, armas, etc. Todo mundo adorava "ver-se" desenhado e as personagens ganharam nomes, que foram muito pouco modificados com o passar do tempo. Don-Kee, por exemplo, era o Donkey (será que alguém sabe qual gorila famoso inspirou esse nome?), Ximp era Chimp, Makbarry era Mc Berry, Orangh e Othang tiveram apenas a grafia alterada, Sagg sempre foi Sagg e Hammad... Bem, não me lembro do primeiro nome dele, rs! E o traço deles foi evoluíndo, o tempo foi passando e a idade avançando, até que chegou a hora em que a adolescência chegou e a gente já não brincava mais. Mesmo assim, a historinha dos macacos estava sempre presente e eu tinha a vontade de que virasse uma história em quadrinhos. Tenho até hoje (preciso achar), algumas páginas toscamente esboçadas, provavelmente do início da minha adolescência, mas abandonei o projeto. Como todo (ou quase todo) garoto desta idade, tinha outras coisas na cabeça, sem mencionar que eu não tinha nenhuma perseverança para continuar um projeto. Mas a história continuava ganhando corpo em minha mente e, conforme crescia, ia inserindo os significados subjetivos das mensagens que queria passar nas entrelinhas, como as críticas às formas de governo existentes no nosso mundo e à segregação racial, a ideia de que uma pessoa pode mudar o mundo começando por mudar a si mesma e com isso mudando os que estão à sua volta, entre outras. E lendo A Longa Jornada (Watership Down), de Richard Adams, O Senhor dos Anéis, A História Sem Fim e muitos outros livros de fantasia, as ideias iam ficando cada vez mais elaboradas e complexas e, quando dei por mim, estava fazendo anotações curtas dos acontecimentos da história em ordem cronológica, desenhando mapas, elaborando glossários... Então, quando tinha de dezesseis para dezessete anos, percebi que, do jeito que as coisas estavam caminhando, eu estava juntando material necessário para escrever um livro.
A ideia me empolgou de começo e cheguei a comentá-la com meus pais e alguns amigos mais velhos, que me incentivaram. De muitos ouvi "nossa, seria um estouro! Imagina se você consegue publicar isso antes dos dezoito anos?", porém ao invés desse tipo de comentário me animar, senti que isso era uma pressão enorme. O tempo passou e, alguns anos depois, resolvi começar a escrever. Conforme escrevia, dava para um ou outro ler e comentar, mas mesmo os comentários sendo positivos, nada que escrevia me agradava. Acho que escrevi o primeiro capítulo mais de dez vezes e nunca me dava por satisfeito. Até que um autor de livros didáticos, certa vez, me disse: "Escrever é assim mesmo. Ou você segue escrevendo, ou nunca vai terminar nem mesmo um capítulo. Pare de se preocupar e escreva. A revisão você faz depois."
Enfim, um conselho animador. Talvez por eu já estar mais velho, talvez porque esse autor tenha acertado na mosca, ponderei suas palavras e escrevi. Escrevi cinco capítulos. E parei. Faculdade, trabalho e outras atividades me consumiam o tempo e o projeto de escrever um livro me parecia desimportante na época.
E agora, retomo de onde parei. Claro que, não sem antes revisar o que eu já tinha escrito e mudar algumas coisinhas, rs! Mas prometi à mim mesmo que essa é a última vez que faço isso, pelo menos até que eu termine a primeira parte da história. E tenho muito o que escrever, se quiser terminá-la e contá-la para os outros, como fazia quando era apenas uma criança cheia de ideias e com gosto para histórias.

Mais um pouquinho do primeiro capítulo

Ele não era apenas famoso entre seus soldados, mas sua grande estatura e seu porte majestoso eram conhecidos por todos da tribo. A bem da verdade, ele era o maior gorila que já nascera em Tutenbarh. Muitos o comparavam à Baan-Thô, o lendário, aquele que segundo ditava a tradição, havia sido o primeiro macaco criado por Tuttan e quem distribuiu as habilidades e características de todas as raças. Realmente, Don-Kee era muito grande e forte, porém devido ao treinamento que recebera desde filhote, era também ágil e aprendera a não desperdiçar suas energias, pois sabia o quão demorado era repô-las.

Ao aproximar-se do portão à distância de uma flecha, viu que uma das divisórias do portão se abria. Esta era consideravelmente menor do que o portão principal e dela saiu um gorila, que veio lhe encontrar. Como ditava a sua posição, parou e esperou este se aproximar.

- General Don-Kee, é muito bom vê-lo novamente! - disse o outro. - Fico feliz do senhor chegar durante o meu turno de guarda!

- Capitão Hunghô, é bom vê-lo também. Como estão as coisas por aqui? - Respondeu Don-Kee.

- Bem, senhor, não tivemos muitas novidades desde que deixou a cidade. O racionamento de suprimentos ainda está em vigor, porém não chegamos a um estado crítico. A guilda dos armeiros continua a produção dia e noite e nossas fazendas ao leste e ao sul não encontraram nenhuma dificuldade ainda.

- E como está a saúde do velho Líder? - Don-Kee perguntou, ansiando pela resposta, porém demonstrando serenidade.

- Bem, Tsuin-Hou está sempre com ele. Isso poderia ser considerado como sinal de agravamento do estado de sua saúde, porém o que se diz por aí é que Vermuhakhan está na mesma. - Respondeu Hunghô, cuidando para que suas palavras não preocupassem Don-Kee além do necessário.

- Está bem. - respondeu ele. - Então, com sua permissão, gostaria de entrar logo e ir saudar meu velho pai adotivo.

- Sem sombra de dúvidas, senhor! - respondeu o capitão. - Se me permite, lhe acompanharei até o portão.

Acenando afirmativamente, Don-Kee adiantou-se em direção a entrada, seguido por Hunghô. Atravessar aqueles portões era sempre reconfortante e a volta ao lar causava-lhe sempre aquela sensação deliciosa de estar em casa. Ao passar pela entrada das guaritas, os guardas que estavam pelo caminho saudaram-no formalmente, juntando as patas traseiras e desapoiando as dianteiras do chão, levando a mão direita sobre o lado esquerdo o peito. Don-Kee não parou de andar, mas retribuiu a saudação. Ao cruzar a porta, despediu-se de Hunghô e seguiu para o centro da cidade, onde se encontrava a casa do Líder.

Don-Kee fora abandonado quando ainda era filhote de peito e Vermuhakhan o encontrara em uns arbustos do jardim da praça central da cidade. Solteiro e sem herdeiros, além de comovido com o fato de um ser tão pequeno ter sido abandonado, tomou-o para si e criou-o como filho. Na época, Vermuakhan finalizava o treinamento de Tuttan e já era o Escolhido de sua aldeia, portanto desde que conseguia se lembrar, Don-Kee sempre fora o filho do Líder da tribo. Fora criado sem mãe, mas Zenthalla, a velha ama de Vermuhakhan, também cuidou dele até que foi levada para o reino de Enmbarh, perto da época de Don-Kee atingir a maioridade.

Além dos cuidados do Líder, Don-Kee recebeu parte da sua educação de Tsuin-Hou, o supremo sacerdote da Ordem de Tuttan na tribo. Ambos, sacerdote e Líder, eram amigos de infância, quase como irmãos, e o carinho que Vermuhakhan tinha por Tsuin-Hou foi herdado por Don-Kee, que também o amava profundamente. E, embora ambos sempre insistissem para que Don-Kee completasse o treinamento de Tuttan, o jovem recebera o grau máximo apenas na parte física, deixando a parte interior apenas iniciada. Isso não significava que Don-Kee fosse curto de inteligência, muito pelo contrário - destacava-se muito por ser astuto, possuir uma memória bastante boa e por ter um raciocínio ágil - mas ele se interessava muito mais por estudar táticas militares e história da tribo do que as antigas letras, costumes e tradições gorilas e, devido a não dar importância à concentração, nunca aprendeu a limpar o espírito através das técnicas tradicionais de meditação. Também não era muito versado nas tradições da Ordem de Tuttan, embora reverenciasse o deus criador de todas as coisas e seguisse os costumes religiosos.

Chegando à praça central, Don-Kee viu que as velhas fêmeas da cidade continuavam sua vigília diante da casa do Líder. Desde que o estado da saúde de Vermuhakhan piorara, elas alternavam-se em velada incessante, pedindo a Tuttan que salvasse o velho Líder. Ao verem que Don-Kee se aproximava, foram ao encontro dele e o saudaram. Don-Kee comprimentou-as de modo geral, demonstrando respeito e apreço por elas, porém não demorou a despedir-se e bater à porta da casa do Líder, onde um guarda abriu-lhe passagem, dizendo que era aguardado.

A casa não era ostensiva, porém grande e espaçosa. Tinha um jardim no meio dela e no centro deste ficavam os aposentos do Líder. Conhecendo os hábitos de seu pai, Don-Kee bateu à porta e esperou. Tsuin-Hou veio abri-la e o abraçou:

- Don-Kee, meu filho, abençoado seja! Como está você? Vejo que goza de boa saúde! Venha, entre. Seu pai o aguarda.

Foram os dois ao pé do leito de Vermuhakhan. O velho gorila realmente aparentava a a idade avançada que tinha, porém ainda demonstrava vigor e a musculatura que desenvolvera na juventude ainda não havia murchado completamente. Estava deitado, de olhos fechados, mas ergueu a cabeça e sorriu ao ver entrar o filho:

- Meu filho, seja bem vindo de volta ao lar! Muito me agrada que tenha conseguido chegar antes que o Macaco Negro de Enmbarh viesse buscar a minha alma.

- Não diga isso, meu Líder! - respondeu Don-Kee - O senhor está apenas indisposto e a idade lhe é avançada, mas muitos anos ainda virão para que nos governe e...

- Não diga tolices, Don-Kee - interrompeu Vermuhakhan. - Se há uma coisa que todos os animais sabem é quando sua hora se aproxima. Já vivi muitos anos e desempenhei meu papel. Além disso, você já foi tocado por Tuttan e ambos sabemos o que isso significa.

- Que sua hora está chegando, pois não há possibilidade de haverem dois líderes ao mesmo tempo - completou Don-Kee. - Eu sei disso, meu pai, porém não tenho a certeza de ser o Escolhido.

- Ora, os sinais falam por si só - disse Tsuin-Hou. - Você foi iluminado pelo deus sol e manifestou isso claramente! Não lute contra sua vocação, meu jovem. Você é o próximo Líder da tribo dos gorilas.

E era verdade. Don-Kee sentia essa certeza crescendo a cada dia. Por isso, calou-se e assentiu. Vermuhakhan retomou a palavra:

- Este é o motivo de eu ter mandado lhe chamar. É hora de você partir para o isolamento.

- Mas isso não pode ser, meu pai! - respondeu Don-Kee, exaltado. - O isolamento do futuro Líder só se inicia quando, bem... Quando...

- Quando o Líder anterior parte para os domínios de Enmbarh, sei muito bem. - respondeu Vermuhakhan. - É o que dizem as antigas leis. - Olhou para Tsuin-Hou, que assentiu gravemente e continuou: - Mas as leis também dizem que é no isolamento que um Líder recebe a luz e a dádiva de Tuttan para governar seu povo. E governar significa, muitas vezes, dar ordens. É isso que estou fazendo agora, meu filho, ordenando que você parta amanhã para seu período de isolamento, afim de receber as mesmas dádivas que recebi na sua idade.

Don-Kee parecia incrédulo. Olhou de Vermuhakhan para Tsuin-Hou, que mantinha os olhos baixos, esperando que o supremo sacerdote contradissesse seu pai, mas isso não aconteceu. Mantiveram-se em silêncio por um momento, até que Tsuin-Hou olhou para Don-Kee e disse, com a voz serena:

- Meu filho, seu pai me comunicou este desejo há alguns dias e seu intuito em ordenar-lhe isso é bastante justificável. Estamos em guerra, a situação nas fronteiras é bastante delicada e perdemos território a cada dia. Não podemos nos dar ao luxo de ficarmos sem Líder por um mês. Sabe Tuttan o que aconteceria durante este tempo.

- Mas eu não entendo como isso está certo - disse Don-Kee a Vermuhakhan. - O que aconteceria se, ao regressar, estivéssemos os dois entre os gorilas? Não pode haver dois Líderes! - enfatizou.

- Don-Kee, tenho certeza de que isso não acontecerá - respondeu seu pai. - Confie nos anos de experiência que tenho e na certeza que todos alcançam à beira da morte. E é essa mesma certeza que me alerta da urgência de procedermos assim. Não possuo o dom de prever o futuro como alguns anciãos, porém me é muito vivo no coração que o seu papel não será de extrema importância apenas entre os de sua raça, mas sim para todos os macacos da floresta de Tutenbarh.

- Seu pai está certo - disse Tsuin-Hou. - Não duvide da graça que ele recebeu de Tuttan para comandar. Não duvide da graça que você mesmo receberá em breve.

Don-Kee encarava o chão, com as ideias trabalhando furiosamente. Parecia enfrentar o dilema e não chegar a conclusão alguma. Compreendera muito bem o argumento deles e concordava com tudo o que fora dito, porém algo lá dentro, bem no fundo, lhe dizia que isso tudo não estava certo. Não podia estar. Passou algum tempo em silêncio. Vermuhakhan e Tsuin-Hou trocaram alguns olhares significativos, porém ambos não ousaram interromper os pensamentos do jovem. De repente, a expressão de Don-Kee se desanuviou. O Líder e o sacerdote olhavam para ele. O jovem ergueu os olhos e disse:

- Que assim seja. Antes de mais nada, devo obediência tripla nessa situação: ao supremo sacerdote, ao Líder e à meu pai. Partirei quando me ordenarem.

Os dois velhos gorilas sorriram paternalmente. Tsuin-Hou colocou a mão sobre o ombro de Don-Kee e disse o quanto ficava feliz por ele ter compreendido a grandeza da situação. Seu pai, ainda sorrindo, tomou-lhe a mão e o toque transmitiu ao filho o quanto se orgulhava dele:

- Meu filho, você realmente é o escolhido. Sua noção do dever é bastante profunda e isso é visível na obediência que demonstrou. Se existia alguma dúvida de que você é realmente o escolhido, esta dissipou-se diante de mais essa prova concreta.

- Espero que sim, meu Líder - respondeu Don-Kee.

- Agora vá ver sua fêmea e seu filhote, pois há muitos dias que você partiu. - disse Vermuhakhan. - Amanhã, ao alvorecer, venha me ver novamente, para receber minha bênção e nos despedirmos.

Com um aperto no coração, Don-Kee fez uma curta reverência aos dois e deixou o quarto. Ao sair, viu que anoitecia e dirigiu-se rapidamente para casa, envolto em pensamentos.

Shigg o esperava à porta. A notícia de que Don-Kee havia regressado fora-lhe dada quase que imediatamente após a sua entrada na cidade. Ela então preparou-lhe um banho e uma refeição quente, pôs o filhote para dormir e foi esperar seu macho à porta. Sentia muitas saudades e ansiava por vê-lo. Quando percebeu que ele entrava pelo jardim da frente, adiantou-se e correu a seu encontro, pulando em seu pescoço e beijando-lhe as faces, num abraço apertado:

- Don-Kee, meu Don-Kee! Como estou feliz!

O macho sorriu e a colocou no chão, acariciando seus longos cabelos negros. Beijou-lhe e disse:

- É bom estar em casa, é bom voltar para você! Onde está Man-Kee? Esperava vê-lo acordado!

- O pequeno se envolveu numa briga hoje, ao término de suas lições - ela respondeu. - Como castigo, foi dormir sem jantar e mais cedo. Não sabia quando você retornaria, senão teria lhe dado uma punição mais leve, para que pudesse vê-lo ainda hoje! Mas teremos outros dias, para que possa matar as saudades de seu filhote, não é? - perguntou, apreensiva.

- Infelizmente não - suspirou Don-Kee. - Devo partir novamente ao amanhecer.

- Mas com que intuito Vermuhakhan o convoca e o manda partir em tão pouco tempo? - indignou-se Shigg.

- Vamos entrar que te conto tudo. - respondeu o gorila.


Pessoal, quero opiniões sobre o texto, hein? Toda crítica construtiva será muito bem-vinda!